Por Pedro Paulo Rosa
Foto: Blog África 81 / Arquivo pessoal da entrevistada
Diante das constantes notícias da iminência de morte de Nelson Mandela, o blog O
HÉLIO decidiu realizar uma entrevista especial falando sobre as questões que
envolvem este personagem (ainda) vivo da História da África e também muito
presente na mentalidade da sociedade ocidental como símbolo de pacifista,
principalmente a partir da década de 90 do século XX. Para elucidar Mandela e
seu legado, convidamos a Professora Andrea Marzano, doutora em História Social
pela UFF (Universidade Federal Fluminense) e, atualmente, professora de
História da África da UNIRIO (Universidade Federal do Estado do Rio de
Janeiro). A pesquisadora nos conta que a sua ligação com o continente africano
se dá desde a infância. Durante a conversa, acabamos entrando em discussões
internas do Brasil, como, por exemplo, a Lei 10.639. Confira.
O HÉLIO: Atualmente,
lida com quais vertentes da História? De que maneira seu interesse pela África
cresceu?
ANDREA MARZANO: Sou
professora de História da África e desenvolvo pesquisa sobre a cidade de
Luanda, em Angola, entre o final do século XIX e as três primeiras décadas do
século XX. Meu principal objetivo é abordar, através da análise de jornais,
relatos de viajantes e fontes literárias, as alianças e conflitos inerentes à
intensificação da presença colonial. Meu
interesse pela África vem da infância, por motivos familiares. Meu pai morou e
trabalhou em Moçambique como cooperante, após a independência. Como meus pais
eram separados, ele foi para lá e permanecemos, eu e meu irmão, com nossa mãe
no Brasil. Como a maioria das crianças de classe média daquela época, ficava
fascinada com o fato de ter um pai vivendo na África. Ele precisou de muitos
argumentos para me convencer de que não existiam leões, crocodilos e girafas no
centro de Maputo, capital de Moçambique! Fui para Moçambique pela primeira vez
no início dos anos 1980. Uma criança branca de classe média, que vivia na zona
sul do Rio de Janeiro, convivia com poucos negros nos ambientes em que
circulava, excetuando-se, é claro, aqueles que estavam em situação de trabalho.
Por conta disso, já no embarque, no Galeão, tive uma amostra da rica
experiência que teria a seguir, como parte de uma minoria branca convivendo com
negros nas mais diversas situações. E assistindo, ao mesmo tempo, o início da
construção de um país.
Já
historiadora, trabalhando na Universidade Candido Mendes, tive contato com
pesquisadores do Centro de Estudos Afro-Asiáticos, que despertaram novamente
meu interesse pela África. Lá, conheci meu marido, professor e pesquisador de
História da África, que me estimulou a iniciar uma pesquisa na área. Hoje minha
atividade profissional – de pesquisa e ensino – é completamente dedicada à
História da África.
O HÉLIO: Desde
quando o Mandela desperta a sua atenção? Em que momento, na sua vida
estudantil, este personagem lhe ocorreu?
ANDREA: Minhas primeiras referências sobre o apartheid remontam à
infância. Como disse, meu pai morava em Moçambique, que faz fronteira com a
África do Sul. Moçambique foi uma colônia portuguesa que se tornou independente
em 1975, quando a Frelimo, de orientação socialista, assumiu o poder. Logo após
a independência, iniciou-se no país uma guerra civil opondo o governo às forças
da Renamo, criada na Rodésia, atual Zimbábue, que possuía um regime de minoria
branca. Posteriormente, a Renamo obteve apoio da África do Sul do apartheid.
Estive em Moçambique, portanto, durante a guerra civil, e lá ouvi as
primeiras informações sobre o regime sul-africano. Só conheci a África do Sul
em 2005, mas meu avô visitou o país por volta de 1980 e voltou com relatos
impressionantes sobre a segregação racial no país. Era uma criança muito
interessada por histórias de viagens, e ouvi aquilo tudo com muita atenção. Mas
não me lembro se ouvi falar de Mandela já naquela época, ou só mais tarde.
O HÉLIO: Considerando
que as ações de Mandela influenciaram todo o mundo moderno e ressignificaram a
relação entre a África e os demais países, explique um pouco de Mandela e o seu
legado tanto para seus conterrâneos quanto para o mundo ocidental. Quero
tentar, com essa provocação, que a gente tente esboçar em resposta para a
dimensão transformadora que as atuações dele implicaram. Que atuações foram
essas? Ele fora "traído", "travado" ou "apoiado"
por alguém? Por instituições? Quem? Quais?
ANDREA: Mandela nasceu em uma aldeia, obteve instrução básica em
instituições metodistas e partiu cedo para Johanesburgo, onde se formou em
Direito e se tornou militante do Congresso Nacional Africano, que havia sido
fundado em 1912 por uma elite negra ocidentalizada, para lutar contra o avanço
da legislação segregacionista. A África do Sul, inicialmente chamada de União
Sul-Africana, era um país independente, governado por uma minoria branca, desde
1910. Uma parte de seu território era governada por britânicos, enquanto outra
era administrada, com relativa autonomia, por bôers. Os bôers eram descendentes
de franceses, alemães e sobretudo holandeses, presentes na região desde o
século XVII, que falavam uma língua própria: o africânder.
Foi como militante do Congresso Nacional Africano que Mandela assistiu a
ascensão do apartheid, institucionalizado em 1948 com a subida ao poder do
Partido Nacional, liderado por bôers. No início dos anos 1950, Mandela
tornou-se vice-presidente do Congresso Nacional Africano. Essa época foi
marcada pela expropriação de terras dos negros e pelo avanço da segregação
espacial. Mandela liderou a resistência a esse processo, sofrendo prisões e perseguição.
No entanto, seguindo a concepção de resistência pacífica que marcava o CNA
desde a sua fundação, condenava as ações violentas como forma de atuação
política. No início da década de 1960, a truculência do regime fez com que o CNA
abandonasse, sob a liderança de Mandela, o princípio da não-violência. Vivendo
na clandestinidade, Mandela organizou o braço armado do CNA e a formação de
guerrilheiros que lutariam contra o regime do apartheid. Em 1962, após uma
viagem clandestina por várias partes do continente, foi preso e condenado a
seis anos de prisão. Dois anos depois, após novas acusações, foi sentenciado à
prisão perpétua. Em meados da década de 1980, ainda na prisão, contrariando
muitos de seus correligionários do CNA, Mandela iniciou o processo de
negociação com as autoridades, tendo em vista o fim do apartheid. Em um momento
de crescente pressão internacional contra o regime vigente na África do Sul,
Mandela foi extremamente hábil na decisão de negociar com o governo,
representado inicialmente pelo Ministro da Justiça e, depois, pelo próprio
presidente Pieter Botha. Como resultado da pressão externa e interna, Mandela
foi solto em 1990, tornando-se, no ano seguinte, presidente do CNA. Em 1992, um
referendo entre os brancos aprovou a realização de reformas no regime e a
formação de uma futura constituinte. No processo de transição, liderado por
Mandela e pelo presidente De Klerk, Mandela foi criticado tanto por partidários
do apartheid quanto por militantes do CNA, que rejeitavam a estratégia de
negociação com o governo. Um deles era Cris Hani, líder do braço armado do CNA.
O assassinato de Hani por um homem branco ameaçou o processo de transição, por
acirrar o ódio racial. Mandela teve grande importância nesse momento,
pronunciando-se publicamente e pedindo calma à população negra. O governo de
Nelson Mandela, entre 1994 e 1999, foi marcado pelo esforço de conciliação de
todo o povo sul-africano. Mandela investiu maciçamente na ideia da convivência
entre brancos e negros, recusando o revanchismo contra os que haviam sido,
durante décadas, beneficiários do apartheid. Seu governo não foi a mera
substituição dos brancos pelos negros no poder. Foi, acima de tudo, a tentativa
de construção de uma África do Sul multirracial. Aí reside, sem dúvida nenhuma,
a grande dimensão transformadora de sua passagem pela presidência. O governo Mandela, no entanto, foi criticado
por alguns de seus velhos aliados do CNA. Uma das principais acusações foi a do
desinteresse pela distribuição de renda na África do Sul. Para os críticos mais
ferozes, o governo Mandela favoreceu o enriquecimento dos brancos, mantendo os
negros, através da pobreza, em posição de subalternidade.
Profª Drª Andrea Marzano |
O HÉLIO: É difícil, para os
historiadores e para o grande público, não "endeusarem"
Mandela?
ANDREA: É difícil não reconhecer a grandeza de um homem que passou quase
trinta anos na prisão e que, ainda assim, foi capaz de superar seus próprios
rancores em nome de um projeto político para a África do Sul. No entanto, os
historiadores têm a obrigação profissional de evitar o “endeusamento” de
Mandela como personagem histórico, reconhecendo seu legado, mas, ao mesmo
tempo, suas hesitações, incertezas e limitações. Além disso, não devemos
avaliar toda a sua trajetória a partir das atitudes que tomou na década de
1990. Embora sua ação política, ao longo da vida, tenha sido coerente no que
diz respeito à luta contra o apartheid, suas ações e seu discurso variaram ao
longo do tempo, respondendo aos desafios de cada momento histórico. Nenhuma
trajetória de vida, nem mesmo a de um homem extraordinário como Nelson Mandela,
é inteiramente coerente e isenta de contradições.
O HÉLIO: Qual África queria Mandela?
ANDREA: O Mandela dos
anos 1990 queria uma África do Sul multirracial, onde os ódios fossem superados
e negros, brancos, mestiços e indianos construíssem, juntos, uma nova nação.
O HÉLIO: O
que é o apartheid contra o qual Nelson tanto lutou? Como enxerga a inserção da
população negra / africana nas sociedades ocidentais hoje?
ANDREA: O apartheid foi um regime de segregação racial, dominado por uma
minoria branca, que teve lugar na África do Sul entre 1948 e 1994. Foi liderado
pelos bôers ou africânders, reunidos no Partido Nacional. No apartheid, a
discriminação racial era legitimada por leis que determinavam a segregação
espacial e serviços diferenciados – de saúde, educação, entre outros – para
negros e brancos. Envolveu expropriação de terras dos negros e, na década de
1970, a criação de bantustões ou “pátrias tribais autônomas”. Pode-se dizer que
a institucionalização da segregação racial, através do apartheid, foi a
expressão máxima, radical, da exploração dos negros pela minoria branca da
África do Sul.
Hoje, em muitas sociedades ocidentais, as populações negras enfrentam a
existência avassaladora do racismo, embora não institucionalizado como na
África do Sul do apartheid. Isso é válido, por exemplo, para o Brasil. No
entanto, medidas vêm sendo tomadas, em diversos países, para impedir, senão o
racismo, ao menos as manifestações abertas de discriminação racial. A criminalização dos atos de discriminação
racial é um passo muito importante nesse sentido. Mas precisamos avançar muito
na construção de sociedades mais justas, em que as oportunidades sejam iguais e
em que negros e brancos sejam, de fato, encarados como pertencentes a uma única
raça humana.
O HÉLIO: Como interpreta a escolha brasileira para
ensinar a História, que, a partir do século XIX, optou pela ótica do dominador?
De que maneira a relativização e a obrigatoriedade do ensino de História da
África nas universidades brasileiras somam para o ensino da História no
país?
ANDREA: É possível dizer
que o ensino de História no Brasil, no século XIX, assumiu a ótica do
dominador. Mas é difícil fazer essa generalização para o século XX e para o início
do século XXI. Desde as últimas décadas do século XX, alguns livros didáticos,
sob inspiração marxista, contam a história do Brasil evidenciando o aspecto da
“luta de classes”. Hoje, bons livros didáticos e dedicados professores levam,
para as salas de aula, a perspectiva da “história vista de baixo”. O que não significa, evidentemente, que a
ótica do dominador esteja ausente nas escolas brasileiras.
O currículo dos cursos de
Graduação em História foi marcado, por muito tempo, por uma perspectiva eurocêntrica.
Os estudos se limitavam basicamente à História da Europa e à História do
Brasil. Hoje, em parte por influência do relativismo cultural, entendemos que
todos os povos têm histórias dignas de serem estudadas.
No caso específico da
História da África, a inclusão nos currículos de Graduação foi motivada pela
demanda resultante da lei 10.639, de janeiro de 2003, que estipulou a
obrigatoriedade do ensino de História e Cultura Afro-Brasileira nos currículos
de Educação Básica. A aprovação da lei 10.639 foi resultado da pressão dos
movimentos sociais, particularmente dos movimentos negros, que buscavam, por
esse caminho, a elevação da auto-estima das populações afro-descendentes, além
de mais um instrumento de combate à discriminação racial presente na sociedade
brasileira.
Esses argumentos já são
suficientemente fortes para justificar o estudo da História da África nas
escolas e universidades. Mas, para além disso tudo, gostaria de lembrar que,
como dizia Marc Bloch, “o historiador é como o ogro da lenda; onde fareja carne
humana, sabe que ali está a sua caça”. Os historiadores estudam a vida do homem
em sociedade, no tempo. E os africanos não são menos homens, ou possuem
histórias menos importantes, do que os habitantes de outros continentes.
O HÉLIO: Para
você, a universidade brasileira ainda ocupa um lugar de exclusão? Ou, nunca
ocupou?
ANDREA: Por muito tempo, a universidade brasileira ocupou um lugar de
exclusão, sendo voltada exclusivamente para a formação de uma elite. O que não
significa, evidentemente, que indivíduos dotados de sorte e muito esforço não
tenham “driblado seu próprio destino”, chegando à universidade e aproveitando o
curso universitário como trampolim para a ascensão profissional e social. Hoje,
é possível perceber um esforço de democratização do ensino universitário, que
se reflete na ampliação de vagas nas universidades públicas e na concessão de
bolsas de estudo nas universidades privadas. Outro passo importante será a
criação de condições para que os bacharéis possam, de fato, ser absorvidos pelo
mercado de trabalho, em posições condizentes com a formação obtida. O que
envolve, necessariamente, maior investimento na qualidade dos cursos e,
sobretudo, nos alunos, no sentido de ajudá-los a superar deficiências que,
infelizmente, são trazidas desde a Educação Básica. Seria redundante dizer que
o investimento na universidade não faz muito sentido se não for acompanhado de
um trabalho sistemático pela melhoria da Educação Básica, sobretudo, mas não
apenas, na rede pública de ensino.
O HÉLIO: Qual biografia sobre ele que você mais indicaria, Andrea?
ANDREA: Para começar,
indicaria sua auto-biografia: MANDELA, Nelson. Um longo caminho para a liberdade. Lisboa: Editorial Planeta, 2012.
O HÉLIO: Dá
pra resumir Nelson Mandela em uma sensação ou palavra?
ANDREA: Mandela será lembrado pela defesa da superação do ódio racial e
da conciliação de todos os sul-africanos. A bandeira sul-africana, unindo as
cores do CNA às do regime de minoria branca, simboliza o seu legado como
negociador da transição e como primeiro presidente negro da África do Sul.