sábado, 21 de maio de 2011

A MELHOR PROFISSÃO DO MUNDO - POESIA DO MOVIMENTO

Doris Rollemberg ao lado de um dos seus prêmios

Por Pedro Paulo Rosa
Revisão Textual: Paulo Cappelli
Foto: Pedro Paulo Rosa

A cenógrafa Doris Rollemberg nos presenteia com uma rica conversa em seu apartamento sobre o seu mais novo projeto (de coordenação e cenografia): “ Bartleby, o escriturário”, que estreou ontem, no Teatro Laura Alvim em Ipanema. A peça é adaptada do texto de Herman Melville pelo Diretor João Batista, apresentando como o escriturário Bartleby o ator Gustavo Falcão. Doris, além de cenógrafa, passou primeiramente pela arquitetura e nos explica sobre o seu processo de criação, muito imbricado à ideia da cinética.


- Esse trabalho reproduz muito temas recorrentes nos nossos trabalhos. Como o mal estar do homem na sociedade. A dificuldade de se adaptar. Lendo “O Homem da cabeça de papelão” me lembrei desse texto do Melville. Aí, propus à Companhia Dramática de Comédia que montássemos essa peça sobre o Bartleby. Desde 2008 que eu venho com essa ideia. Ganhamos o edital da Eletrobrás e o da Secretaria do Estado do Rio de Janeiro. A gente precisa destacar também a relevância grande do narrador-personagem nos trabalhos da Companhia e no próprio texto do Melville. O texto sobre o Bartleby é uma construção agramatical, que interrompe. É o “ prefiro não “. O Deleuze diz que Bartleby está numa zona de indeterminação forte e que, nesse sentido, o personagem é sem particularidade. E isso é interessante porque ele não prefere não fazer. O que existe é uma zona de suspensão. A partir daí, se constrói com essa frase do “prefiro não” uma potencialidade.


O.H.: Quer dizer, não há uma preocupação em construir um personagem carismático?
Doris: Pois é, não é uma briga de bem e do mal. É uma situação de uma pessoa singular. Sem referência, sem particularidades, como o próprio Deleuze afirma. Esse texto é de 1853. Tem uma crítica à robotização do homem, fora outras possibilidades de interpretação. É um texto visto como precursor de Kafka e Dickens, por exemplo. Quer dizer, o Bartleby é estranho a si mesmo. O Melville também pensa o que é ser um escritor norte-americano. É um personagem não psicologizado, não importa da onde ele veio, se ele é casado, se tem filhos etc.

O.H.: Shakespeare ia ficar meio triste com ele, né? (RISOS)
Doris: (RISOS) O próprio Melville afirma que Shakespeare é melhor não pelo que fez, mas pelo intervalo do que não fez. Pelo silêncio. É muito bacana porque a gente tem que pensar que, embora esse texto seja completamente atemporal, no sentido de que ele pode nos atender em várias possibilidades interpretativas, é importante compreender o que se passava na cabeça do Melville naquele momento. Até porque o Melville tem uma história de vida louca. Ele se torna marinheiro aos 18 anos. Deserta da Marinha, vive em uma ilha com Canibais! Depois, ele começa a escrever alguns livros que fizeram sucesso. Mas, quando passa a escrever outro tipo de coisa, ele cai no ostracismo. Depois, no final da vida dele, vai escrever poesia. Morre esquecido.

Doris Rollemberg em seu apartamento

O.H.:Tiveram dificuldade com a adaptção?
Doris: Não tanto. O que acontece é que grande parte do texto é falado pelo advogado. O Bartleby fala muito pouca coisa, e a maioria dessas coisas é “prefiro não”. É interessante perceber que o advogado não tem nome.

O.H.: E como é trabalhar com o Gustavo Falcão?
Doris: Ah, está sendo maravilhoso o entrosamento entre todos do elenco. O Gustavo é uma pessoa doce, amiga. Leve. Eu fiz o cenário de uma das primeiras peças dele, quando ele era bem novinho mesmo. (RISOS) Quando eu assisti à peça “A Máquina”, eu me apaixonei por todos os atores. Perguntei a mim mesma: meu Deus, que atores são esses?

O.H.: E como foi que você encontrou a cenografia profissionalmente?
Doris: Na verdade, fiz primeiro arquitetura. E não sei o porquê até hoje. Eu acho que a gente entra na faculdade um pouco sem saber. Eu hoje como professora percebo o quanto essa situação é complicada. Acho que no ensino médio já devia ter uma outra preparação. No primeiro ano de faculdade, mesmo eu já sendo assídua espectadora teatral, passei a ver muitas peças diferentes. Eu assistia muito, mas não pensava em fazer. Sandra Alvim foi uma das minhas formadoras mais caras. Acredito que a gente se forma muito através do professor. Eu me apaixonei pela História da Arte, matéria que a Sandra lecionava. Ela era uma pessoa encantadora. E eu comecei a achar que eu iria trabalhar com isso. Fui fazendo vários cursos na área, inclusive com a Sandra. Até que, um dia, vi num jornal um curso com o José Dias na CAL. E eu nem conhecia o José Dias! (RISOS). Muito engraçado. Quando vejo minha turma nova pela primeira vez, pergunto: citem cinco cenógrafos sem serem os da UNIRIO. Ninguém me cita um. Então, é assim mesmo no início. Quando eu fiz com o José Dias, aí eu tive a certeza. É com cenografia que quero mexer. Daí ele, o José, me falou: “Você tem que ir para a UNIRIO”. Aí, no segundo semestre de 1984, entrei para cenografia na UNIRIO e continuei arquitetura na UFRJ e percebi que era cenografia que eu queria fazer para a minha vida. Agora, eu acho que arquitetura é importante também, porque lhe fornece uma formação ampla, pegando do macro até micro. Na verdade, me interessava projetar espaços. Mas não sabia, na época, que eram espaços cênicos! Então, resumindo, esse curso com o José Dias e ter entrado na UNIRIO, instituição onde hoje sou professora, são fatores inquestionáveis na confirmação da minha vocação.

O.H.: E como se aproximou do magistério?
Doris: Gosto muito de dar aula. Comecei dando cursos livres na Cândido Mendes. Eu sempre digo que uma das lições primeiras do professor é a ideia da provocação. Você provocar no outro a ideia da provocação, transformação. E aí a Paula Neder, que é uma arquiteta importante, estava abrindo um curso de Design de Interiores, o que na época era muito inovador entre nós aqui no Brasil. Aí, Paula estava formando este curso e me chamou para dar aula de cenografia nesse curso. Dei aula lá por oito anos. Ao mesmo tempo em que fazia concursos de professores, dava aula como professora substituta. É uma coisa que eu gosto! Eu não gosto de fazer só uma coisa! Adoro dar aula, coordenar um projeto de teatro, casa, família etc etc! Na sala de aula, eu esqueço do cansaço. Acho que tem uma energia, uma troca, uma coisa tão bacana que vai além.


No atual trabalho de Doris, tudo foi meticulosamente bem cuidado, não há dúvida entre a equipe. É bonito assistir ao espetáculo por conta da sensibilidade do texto refletida na atuação assertiva do elenco. Gustavo Falcão, Bartleby, causa um certo temor pelo seu silêncio e pela maneira como o seu corpo está estático, estranho a si mesmo. A apatia do protagonista assusta e atrai. Queremos pedir para que Bartleby converse, conte-nos a sua história. Dá vontade mesmo de tomar uma cerveja com ele. Duda Mamberti interpreta e manifesta o advogado desnomeado com primor, explorando a ambiguidade do seu personagem, principalmente ao impostar sua voz de relâmpago, arregalar seus olhos profundos. Rafael Leal, Claudio Gabriel e Eduardo Rieche constroem o eixo de comicidade da peça, garantindo-nos verdadeiras risadas. A atuação deles é comprometida com o conjunto, além de cada um ter uma marca pessoal no personagem. O final da peça nos provoca uma reflexão. Não. Na verdade, o que nos emerge é uma profunda contemplação do drama de Bartleby, imerso numa sociedade difícil de se adaptar, se relacionar. O protagonista sofre do vazio. Ele expõe a nós a lacuna, a “zona de indeterminação” (nas palavras de Deleuze) da qual morremos de medo de encararmos. É estranho a si mesmo. Aí reside o caráter visionário do texto de Melville.

O.H.: Doris, não acha que é difícil hoje o teatro estar mais acessível?
Doris: Não. Há teatros que custam cinco reais, dez reais com peças excelentes. É só a gente procurar que acha. Por exemplo, o Centro Cultural da Justiça Federal ou o Centro Cultural Banco do Brasil. Não ir ao teatro é uma outra coisa. Quanto uma pessoa gasta numa balada? Acho que isso é um problema da gente. Por isso, a figura do professor é tão importante. A educação precisa ser mais humanista, e não só preparada para o ENEM. A gente não forma só um cidadão, mas também um futuro profissional.

Peça " A Caolha "/Direção: João Batista. Cenografia de Doris Rollemberg

O.H.: Como enxerga o versus educação humanística e educação técnica?
Doris: Eu acho que isso é difícil e polêmico. O que acontece é que nós temos um problema de educação de anos e anos. Então, a gente já carrega um déficit quase eterno dessa relação da educação. O REUNI, por exemplo, tem uns aspectos muito polêmicos. É importante que todo mundo tenha a oportunidade de ter o desejo e o acesso. Desde a creche! Tem que começar dali esse acesso, essa possibilidade de entrar e de receber a educação. Agora, por outro lado, o ensino médio precisa estar trabalhado, melhorado. Assim como o ensino fundamental. Eu acho que tem que ser mais humanista, acho que tem que ser melhor. As escolas precisam estar mais preparadas, tudo precisa ser revisto! Os conteúdos, os professores. Temos que formar pessoas que possam pensar, escolher, decidir. Nesse sentido, precisamos da educação técnica e humanística. Na verdade, precisamos mesmo é pensar numa política geral de educação, onde a cultura entre de verdade, esteja no esteio de tudo.

O.H.: Qual o seu conceito de teatro?
Doris: O fundamento principal do teatro é o ator e a palavra. Precisamos preparar os cenógrafos desta forma. Formar pessoas, pensadores. Claro que precisamos de aparatos tecnológicos. Temos que pensar: quem é o nosso aluno? Quem a gente quer que seja o nosso aluno? Eu tenho um aluno que chamo de “meu aluno querido”. Quando eu perguntei sobre a vocação, ele me respondeu que odiava teatro, que só gostava de cinema. Eu respondi a ele que passaria a amar teatro. (RISOS) Hoje, o Jeferson está com uma peça em cartaz. Apaixonado por teatro! Ele é um aluno excepcional.

O.H.: Você acha a cenografia uma carreira elitista?
Doris: Sempre disse que cenografia é a melhor profissão do mundo. E eu acho mesmo! Voltando a história da educação técnica e humanística, penso que o Brasil ainda tem um acesso elitista do ensino. Se a gente pensar dessa forma, a cenografia pode ser considerada elitista sim. Qual é a porcentagem de pessoas que concluem o ensino superior? E, de certa forma, viver de arte é também, pensando dessa maneira estreita, elitista. Quem são os escritores que vivem da escrita, tirando Jorge Amado, João Ubaldo Ribeiro? Quem é que vive de poesia, de artes visuais ou de comunicação no Brasil? Né? Não estou nem questionando quem é bom ou quem é ruim. Agora, por um outro lado, eu acho – e acho mesmo – que a gente só faz bem o que a gente gosta. Acho que tem uma cadeia de desejo que tem a ver com paixão e movimento. E isso faz a pessoa andar, acontecer, entende? Não adianta você fazer aquilo que acha que vai dar dinheiro. Acredito que a pessoa não vai conseguir se posicionar ou ficam na mediocridade para baixo daquela profissão escolhida. Não é só o teatro ou a cenografia que podem ser elite, mas colocação e realização para todos só se a pessoa fizer bem aquilo que mexe com ela, que movimenta. É um movimento de dentro para fora.

Doris Rollemberg estará na 13ª Mostra Quadrienal de Praga exibindo seus trabalhos, e principalmente propagando o afeto expressivo de suas obras. A ideia de movimento – cinética – está na raiz do seu processo criativo. Doris, além de cenógrafa, é uma pensadora da arte brasileira, do teatro. Sem falar na educadora vocacionada que a habita, carregando nos olhos o brilho daqueles que sonham e transformam.

2 comentários:

  1. Parabéns por este post.
    Arte é tdo!!!!

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  2. A arte é tudo! Desde o ato mais sublime e simples ao ato de compreensão das complexidades do universo. Parabéns pela incrível entrevista, riquíssima culturalmente. Continue assim!

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