domingo, 22 de janeiro de 2012

JULIO LUDEMIR, A ESTÉTICA DA CORAGEM

 
Foto: Mazé Mixo


























                                     
Por Pedro Paulo Rosa
Revisão textual: Paulo Cappelli 


O HÉLIO: Você está sempre muito próximo de urgências sociais. Por exemplo, no livro “Rim por Rim”. Como foi aquele trabalho de pesquisa?

JULIO LUDEMIR– Foi um trabalho de pesquisa, um árduo trabalho. Esse livro é resultado de um conjunto de coincidências felizes e infelizes da minha vida. Na verdade, eu tava vivendo um momento super delicado, com dificuldade de dinheiro e me separando da minha mulher. Estava precisando ir para Recife, dar um tempo na minha cidade não natal, mas onde fui criado. Nasci do Rio, mas fui criado em Olinda. E aí, nos últimos meses que eu havia passado no Rio de Janeiro, fiz muitas entrevistas e, por conta delas, me tornei amigo da Elizabeth Sussekind, ex-secretária nacional da justiça. Fiz essas entrevistas com ela por conta de um livro chamado “O Bandido da Chacrete”, que foi sobre um bandido que está na primeira geração do Comando Vermelho. E a Beth, que na época era estagiária, fez a primeira pesquisa sobre crime organizado no Rio de Janeiro. A partir dessa entrevista, ela entrou em contato com aquilo que ela viveu na juventude e começou a se interessar com o que tinha acontecido com aquela geração de presos, como o Paulo César Chaves, que era o meu personagem. A gente começou a criar uma relação. E no momento em que estavo indo ao Recife, ela, que é muito ligada a uma ONG que combate o tráfico de seres humanos, me propôs organizar um livro de ensaios sobre tráfico de pessoas; que implica algo além de tráfico de órgãos. Trabalho escravo e prostituição também estão dentro da discussão. Mas, no fundo, voltando a falar em coincidências, meu pai era um renal crônico e morreu por causa disso. Em momento algum ocorreu à minha família recorrer ao mercado negro de órgãos. Era um negócio que não estava no nosso cenário mental.

OH – Explica mais

 J - Além do cenário ser Pernambuco, além de passar por duas pessoas que representaram a figura paterna para mim; muito queridas, uma delas o meu pai e a outra o meu sogro, que morreu precisando de um fígado novo. Meu sogro morreu na fila de transplante. E eu fiquei muito mobilizado quando ele morreu porque estava me separando da minha primeira mulher, mãe da Juliana, e por conta de todo um problema que se tem quando você está se separando de alguém, não ofereci o meu pedaço de fígado e eles não me pediram. Era a única pessoa que poderia doar naquela pressa toda. Havia também elementos de ignorância, tanto minha quanto daquelas pessoas envolvidas, porque a sensação que tinha era que se eu tirasse um pedaço do meu fígado abriria mão da minha saúde, nunca mais poderia jogar bola etc e tal. Quando não é isso que acontece. Entrei em contato com essas coisas todas quando me foi feita a proposta de coordenar um livro ligado ao tema do tráfico de pessoas. E tem um outro elemento também da minha história pessoal porque envolve a questão judaica: meu pai é judeu e o cara que comandava essa quadrilha lá do Recife era um major israelense. Comecei a tentar entender aquilo tudo. Era um conjunto de coincidências. Nunca imaginei escrever sobre aquilo. Hoje em dia, se alguém enfrenta um problema de falta de órgãos, tenho informação suficiente para dizer: “ cara, eu vou te dar isto aqui”. É o meu livro mais jornalístico, mais na terceira pessoa e no entanto é o meu livro mais pessoal, que envolve as verdadeiras questões da minha vida, desde o fato de ser um livro pernambucano; eu nunca escrevi nada ambientado em Pernambuco, o fato de lidar com a questão judaica e eu nunca havia lidado com nada judaico. E está ligado à perda de duas pessoas que representavam a figura paterna para mim. E o engraçado é que só fui sentir tudo isso na noite de autógrafos, que caí em prantos.  Por trás do “ Rim por Rim”, estou ali o tempo inteiro, inclusive naqueles moleques que vendiam seus órgaos, que eram muito parecidos com os moleques com os quais convivia em Recife.

OH – Como assim?

J – Moleques com aquele humor, com a macheza nordestina, entende? E vender órgão era muito menos trocar por um prato de comida do que trocar pela possibilidade de consumir alguns meses. Um dos títulos que pensei para o livro foi “ Rei por seis meses”. Porque o cara pegava aquele dinheiro e ele tinha uma vida intensa de conforto durante um curto período. Não estamos falando de pessoas em miséria absoluta.

OH– Quanto custava um órgão?

J – Cara, o valor ali na ponta era 15 mil dólares. Mas, na verdade, eles criaram uma rede em que um ia indicando para o outro, que tinha gente comprando por seis mil dólares. Houve uma rede de desvio daqueles 15 mil oferecidos inicialmente. A oferta era tão grande que todo mundo queria vender. Foi uma coisa que mobilizou um bairro inteiro!

OH– O seu amparo para escrever esse livro, além de você, foi quem?

J – Não, ninguém me ajudou. Nunca ninguém me ajudou em livro algum. Meus livros faço sozinho e acho que é a maneira mais confortável de fazer.

OH– Por quê?

J – Cara, porque, em primeiro lugar, você começa a ficar devendo favores. E você precisa sacrificar algum grau de informação. Quando eu estou fazendo um livro, troco qualquer coisa pela informação. Já corri riscos de morte seríssimos.

OH – Li que você não pode entrar na Rocinha. Isso é verdade?

J – É. Por conta de um livro anterior em que priorizei a minha informação, a minha visão de mundo pelas relações que construí ali dentro. Sou tido como um traidor da Rocinha. Mesmo com UPP lá dentro fui lá, pude visitar a comunidade, mas não tenho relações ali dentro. Principalmente com as lideranças comunitárias. Atualmente, não corro mais risco de morte dentro da Rocinha. Com certeza, porém, não vou ter parceiros lá, a não ser as pessoas que sejam inimigas dos indivíduos sobre os quais escrevi.

OH– Fala um pouco sobre o período que morou na Rocinha por seis meses e do processo de escrita do livro “ Sorria, você está na Rocinha”.

J – Esse livro trouxe consequências muito duras para minha vida, não apenas na minha relação com a Rocinha. É um romance inspirado na minha vivência ali dentro, a determinadas pessoas que só falto dar o CPF. Mas, o tratamento do livro é literário e com a liberdade que o romance oferece, misturando personagens e evento.

OH– Você o quis vestir como romance por qual motivo?

J – Em primeiro lugar porque, do ponto de vista jornalístico, não tinha com segurar aquela história. Havia um “provar as coisas” difícil de manter.

OH– A oralidade das provas é muito intensa, né?

J - Também por isso. Você tem uma questão séria para livros jornalísticos que é um negócio chamado direito de imagem. Caco Barcellos, por exemplo, levou processos violentos por conta disso, assim como o Paulo César Araújo. Porque a Lei de Imprensa não protege o autor de livros. O livro é visto como algo que daria lucro ao repórter. Enquanto, no jornalismo, toda informação que está sendo veiculada é vista como serviço público. Entende? Da prestação de serviço para a comunidade. Se eu disser qualquer coisa sobre o Pedro Paulo Rosa, precisarei da sua autorização, mesmo que eu diga que você é bonito, gostoso e incrivelmente genial. Uma das minhas limitações para esse livro era questão do direito da imagem. Hoje em dia você tem e só pode ter obras autorizadas. E aí, escolhi o romance. Mas, talvez acredite mais na mentira literária do que na verdade jornalística! O que é a verdade no jornalismo? Até um certo momento, tudo o que se discutia sobre política dentro de favela era de um modo que se satanizava o tráfico de drogas e se santificava o trabalho voluntário das ONGs. Era quase como se em todas as ONGs morassem Madres Teresa de Calcutá. Na verdade, entrei na favela para escrever um livro politicamente correto. Eu tinha um mote na cabeça que era uma tese de doutorado sobre política de espaço e política de lugar.

OH – Mas, Julio, tem que ter uma motivação. Qual foi a sua?

J – A minha motivação foi no dia em que conheci pessoas que moravam lá. Eu já tinha interesse em favelas. Na verdade, interesse mesmo pelo crime organizado. No fundo, queria escrever uma história, um romance em torno do crime organizado. Quando entrei ali me encantei pela complexidade da Rocinha. Tudo o que eu havia lido ou ouvido falar sobre favela não correspondia com a realidade. Acho que a Rocinha é o primeiro símbolo concreto, real da ascensão da classe C no Brasil. Tinha no meu cenário mental que favela era lugar de lata d’água na cabeça, barracão de zinco, de sem telhados, e vou chegar lá e encontrar uma atividade econômica feroz. Vou entrar na via Apia e encontrar um comércio intenso com uma noite maravilhosa. Com diversidade. Não era uma favela restrita a forró ou a pagode. Entende? Não era uma favela restrita aos tipos e aos estereótipos que se faz da pobreza. Uma das coisas que mais me impressionou é que um dos trânsitos mais complicados, com engarrafamentos paulistanos, é na área da Rocinha. Uma das questões mais dramáticas da favela diz respeito ao estacionamento. Não sei se eu posso falar dele aqui agora, mas o Dudu da Rocinha encontrou a seguinte forma para resolver o problema de estacionamento: ele pegava a pistola e saía numa moto dando tiro (pápá!) nos carros estacionados nos dois lados. Só podia estacionar de um lado da rua. Ele era um bandido violento e um bandido que impunha a ordem na base da bala mesmo. E por conta disso ele vai ser preso e odiado pela população. E, depois, quando ele tenta voltar, a gente vai ter a guerra de 2004, que vai acarretar na adesão da Rocinha ao ADA. No meu imaginário, a última coisa que seria problemática na Rocinha seria a questão do estacionamento. Pensava que o estacionamento seria problema aqui na minha rua, na sua rua lá no Jardim Botânico, entende? É um drama na Visconde do Pirajá, mas nunca seria na Estrada da Gávea. Quando entro em contato com essa complexidade econômica, adentro em uma discussão que permeia todo o governo Lula, que é a ascensão da classe C; que só veio ser discutida no segundo mandato do Lula. Tenho essa percepção em 2002 e 2003, quando visitava a Rocinha e me perguntava: porra, cadê a miséria absoluta das favelas? Qual é o local da miséria no Rio de Janeiro?

O escritor e jornalista Julio Ludemir. fonte: arquivo pessoal
         
OH– Na comunidade de Manguinhos, talvez?

J – Nem lá. Por exemplo, o Morro dos Prazeres enfrenta um grande problema com um condomínio de classe média porque os seus moradores disputam as ladeiras ao redor das quais foram construídos os prédios desse condomínio para quem tem a primazia do estacionamento. Do ponto de vista da favela, aquelas ruas são públicas da Prefeitura. Para o condomínio, aquelas ruas são dos moradores e seus carros. É um embate sério que rola há muito. O local da miséria absoluta não é mais a favela. Ao mesmo tempo, não estou falando que não haja miséria no Rio nem na favela. Uma outra coisa que começo a perceber durante a pesquisa, é como a relação política acontece dentro da comunidade. O tráfico ficava imunizado e satanizado e, do lado de cá, as lideranças políticas, as ONGs, as associações de moradores, como se não houvesse uma diversidade política e de interesses, e, acima de tudo, como se não ocorresse uma necessidade de negociar o seu projeto ali dentro. Pela primeira vez alguém vai discutir uma favela politicamente sem a pobreza com que ela sempre foi vista.

OH– Você foi lá pluralizar o olhar. O que você encontrou no universo das ONGs? É um vespeiro?

J – Óbvio que é um vespeiro. Óbvio que existe uma tensão e uma competição entre as ONGs. Hoje em dia as pessoas não têm um projeto de periferia, as pessoas têm um projeto ao seu interesse, a sua própria ONG. Por exemplo, eu vou ter que convencer o Pedro Paulo Rosa do Blog O Hélio, vou ter que convencer o Futura, a Globo, a Petrobras e a todos os meios de comunicação que patrocinam ou que indiretamente fomentam patrocínio ao criar figuras públicas de que o meu projeto é melhor do que o seu, entende? Não existe dinheiro para financiar todos os projetos. E mais do que isso, você vai para questões mais complexas que envolvem lavagem de dinheiro, terceirização de corrupção. Depois que os financiamentos das ONGs deixaram de ser feitos por instituições internacionais e passaram a ser feitos, basicamente, pelo poder público, o trabalho do terceiro setor tornou-se uma terceirização para poder facilitar a chegada de determinadas obras públicas lá na ponta em decorrência das complicações burocráticas. É mais fácil de você agilizar a chegada dessas obras por meio das ONGs.

OH – E as obras sociais centradas na pessoa política?

J – Aí é outra coisa. Isso é outro ator dentro deste universo disputando as verbas públicas. Agora, o interesse de um centro social é diferente de uma ONG como, por exemplo, a Viva Rio. É diferente de uma ONG como o Afro Reggae. No caso da Rocinha, não existe nenhum lugar no Brasil em que haja tanto investimento social por metro quadrado quanto na Rocinha. E, no entanto, lá é o local onde há menos resposta para tal investimento. Você não produziu lá um artista da complexidade do Mv Bill (CUFA), não produziu um pensador como Jaílson de Souza (Observatório das Favelas), não produziu um cara das articulações políticas como o José Júnior (Afro Reggae). Não produziu um projeto da visibilidade do Nós do Morro (coordenado por Guti Fraga, no morro do Vidigal). A Rocinha não produziu sequer um político. Tem o Nadinho, que é o chefe das milícias lá no Rio das Pedras, que embora seja um miliciano, conseguia reunir a favela.

OH – Por que você acha que a Rocinha não deu respostas?

J – Exatamente por conta da pulverização, por conta dessa disputa de projetos. Que faz com que as pessoas digam que o mais importante não é a Rocinha, mas sim o seu projeto dentro da Rocinha. Existe uma segunda questão: a Rocinha se apresenta como uma cidade a parte do Rio de Janeiro.  No imaginário da Rocinha, aquilo é uma cidade. O morador de lá tem orgulho de poder acordar e dormir sem sair dali. Pode ir ao banco, à faculdade, ao mercado ali mesmo. Aquilo tem uma complexidade econômica tal que você pode viver sem sair dali nunca. Até porque, os projetos sociais não estimulam a circulação. Porra, eu tenho que ter um olhar além de Botafogo que é o bairro em que moro. Tenho que entender que Botafogo faz parte da mesma cidade que a Mangueira, que faz parte da mesma cidade que Santa Cruz, que faz parte da mesma cidade que Ipanema!

OH – Isso quer dizer que a perspectiva da discussão dos projetos sociais, no Rio, está equivocada?

J – Exato. Essas discussões dos projetos sociais no Rio não me dão a cidade inteira. Você tem que circular a cidade, cara! Eu odeio quem acha que o mundo acaba na Lagoa Rodrigo de Freitas! Mas, eu também odeio quem acha que o mundo acaba na Avenida Brasil. Sacou?

OH – E, no Rio, esse pensamento é muito forte. Infelizmente, agora, a insegurança que vejo no "suburbano" que não quer se arriscar em provar o outro lado da cidade é a mesma insegurança que percebo no parceiro que mora na Gávea e não quer visitar, conhecer a bossa nova ou o funk de Campo Grande.

J – Pois é, não existe um projeto de cidade. E, na verdade, tem é que haver um projeto de Estado, de País e de Mundo.

OH – Mas como conciliar o olhar do macro com o micro?

J – Sim, mas não posso restringir a minha vida à Rocinha, à Mangueira, por exemplo, entende? Eu tenho que dar a cidade para esse morador de todos os lugares. A cidade tem que ser um espaço que esteja no imaginário de todos como sendo nossa. Isso tudo, essa divisão que a gente vive, é uma reprodução da mesma lógica da venda do tráfico de drogas. Porque o tráfico reparte da cidade em pontos de venda. Insisto: não existe um projeto generoso de cidade! E fui discutir essas coisas num momento de discussão ainda virgem. Tomei porrada de tudo quanto foi lugar; fui apresentado como um cara não confiável. Entende? E não confiável no sentido de que as minhas informações não eram verdadeiras e que não se podia dizer nada ao Julio Ludemir. Se você dissesse ao Julio que você come a vizinha, você correria o risco de o Julio te denunciar para sua mulher. Fiquei anos sem trabalho porque, nem as pessoas que admiravam a qualidade das informações levantadas por mim, tinham coragem de me chamar. Isso teve um preço tão alto que não tinha mais espaço no Rio de Janeiro. E daí fui para Recife escrever sobre o rim.

Julio Ludemir e a juventude na praia do Arpoador, em Ipanema, em homenagem ao dançarino Gambá, assassinado em janeiro de 2012 fonte: arquivo pessoal


OH – O seu interesse por periferia, por favela, nasceu quando?


J – Na verdade, a grande periferia do Rio e de São Paulo, as grandes favelas, é feita por nordestinos. Tem as favelas negras, as nordestinas. Mas, o grande inchaço da cidade que levou o Rio a ter cerca mil favelas é composta, em sua maioria, de nordestinos. Quando fui morar na Rocinha, reconheci o jeito nordestino.

OH – Mas você é de origem popular?

J – Não, eu não sou de origem popular. Sou filho de um jornalista importante de Pernambuco, de Olinda, que foi um dos primeiros a descobrir esse lugar como uma cidade bacana de morar. Mas, o meu vizinho era o mecânico; o outro vizinho era comerciário. Os meus vizinhos, o local onde jogava bola, a minha sociabilidade é de maloqueiro de Olinda. Antes de me descobrir como filho de uma boa classe média, eu me descubro como um olindense amigo do Papinha, do Pezão...jogamos bola no campo do V 8, que hoje é uma das favelas mais perigosas de Olinda. Meu sonho era jogar no time do Seu Batista. E assim fui criado ao lado daqueles caras. Vou ter interesse por literatura, pelos valores do meu pai, depois da morte da minha mãe. Na verdade, faço uma promessa no túmulo da minha mãe que vou virar escritor. Ela tinha um profundo desgosto do filho maloqueiro que vivia nas ruas. Meu sonho era jogar futebol, meu sonho era ser goleiro. Me preparei até meus quinze anos de idade para isso.


OH – E sua mãe morreu você tinha quantos anos?

J – Dezesseis.

OH – E aí faz a promessa no túmulo.

J – É. Se não consegui te orgulhar em vida, vou conseguir te orgulhar...

OH – No pós vida.

J – Existe uma clara diferença entre o mundo da palavra escrita e o mundo da palavra não escrita. O mundo da minha mãe é o mundo da palavra escrita. A própria lei da propriedade privada e todas as leis é um mundo da palavra escrita. O próprio modo como a palavra escrita, o advogado, a oratória, as leis... é sempre um mundo contido, elegante, circunstancial, um mundo no qual não sei viver até hoje. Até hoje tenho problemas de relação com a minha mulher porque, no fundo, eu prossigo com meu comportamento de maloqueiro da praça de São Pedro. Falo alto, gesticulo muito. Não tenho os modos delicados, contidos e silenciosos das elites.

OH – Aquele silêncio de Ipanema, né?

J – Isso! Fui criado nesse mundo do grito, talvez lhes seja a única forma de expressão.

OH – Você escolheu esse mundo, porque teus pais criaram você para o outro mundo.

J – No fundo, acho que não tinha espaço dentro de casa. Era muito amado por esses parceiros do Recife. Era disputado a tapa para ser goleiro! (RISOS) Era um cara valente, que estava na frente de todas as brigas e desafios. Era um cara plenamente incluído naquele universo. E me sentia inteiramente à vontade. E redescobri esse conforto existencial quando conheci as favelas do Rio de Janeiro, que são favelas nordestinas.

OH – Como você concilia a essência maloqueira com o dia a dia de um escritor, que tem que, por exemplo, lidar com grandes editoras?

J – Acho que o essencial nos meus livros é a coragem. São sempre corajosos, livros em que cada página é igual à bola que pego do pé do atacante. A coragem é uma coisa tão determinante no modo com que lido com as coisas que, hoje em dia, com os meus 51, quase 52 anos, e com um problema na lombar que estou tendo nesse exato momento (RISOS). No fundo, sempre acreditei que tenho força para resistir a qualquer coisa. Essa crença na força física é uma das principais fantasias que movem todos os meus trabalhos. Eu sou forte, resistente, e eu vou! Coragem política e estética. Quando formulo um livro de determinado modo, vou atrás. Não tenho medo. É impossível a mim transitar pelo campo da normalidade. E todos meus projetos possuem essa marca. Não é à toa que eu tive e tenha tanta dificuldade na vida.

Foto panorâmica da favela da Rocinha. Fonte: Blog Cidade Inteira
    
OH – Têm jovens que vão amar ler essa matéria. Têm jovens que não lerão certamente essa matéria.

J – Nos últimos anos, tenho trabalhado com jovens e tenho recebido uma coisa maravilhosa de retorno, de aceitação deles. Me sinto imensamente à vontade com eles. Tenho claro que não sou jovem. Acho babaca esses velhos que acham que são jovens. Eu me sinto bem. O fundamental é você estar bem aos 50, aos 80 e aos 18. As suas questões são totalmente diferentes das minhas. Nós seremos parceiros, vamos trabalhar juntos. Só que os pensamentos, por conta também da idade, são distintos. Tenho encontrado na periferia grandes leitores e produtores. Nunca escrevi para quem era da minha idade. O status quo permite que você seja noticiado neste momento. Agora, quando você não fala para a sua geração, você paga preços caros. Mas recebe coisas significantes. Quando uma menina de 18 anos lê meu livro, sei que este livro vai ter uma sobrevida de pelo menos 40 anos. E se continuar produzindo pelos próximos quarenta anos, ela vai continuar me lendo. Mas, se eu precisar da reverência de alguém de 60 anos, de 70 anos isso significa que vou morrer antes de mim mesmo. Eu e a literatura que escrevo. Então, nunca procurei uma interlocução desse modo.

OH – Julio, não dá para não falarmos, ainda mais com você, sobre as UPPs. Queria que você pontuasse sobre seu pensamento acerca do plano político-social das Unidades de Polícia Pacificadora.

J – As UPPs representam um conjunto mais amadurecido de vários planos de segurança traçados para a cidade do Rio. Em 1990, com o plano real, essa estabilização não acontece porque o governo a tira da cartola. Aquilo foi um plano resultante de 20 ou 30 anos, com desastres e acertos, de melhoramentos econômicos. E por conta disso, o Brasil vive 20 anos de estabilidade econômica. Mas, o que garantiu o plano real é que ele é resultado de uma série de outras iniciativas. Dentro do ponto de vista dos projetos sociais, estamos conseguindo dar uma dimensão maior a eles exatamente porque já tivemos muitos projetos experimentais, o que nos permite, nesse momento, a guarda do Estado. Nesses projetos e programas sociais precisam sair do campo experimental e entrar no campo da escala, no campo das políticas públicas. O que está acontecendo com as UPPs não é diferente. Não é o primeiro projeto de segurança pública que o Rio de Janeiro recebe. Aqui já teve Gpae, já teve policiamento comunitário, enfim, várias movimentações nesse sentido. A UPP é um aperfeiçoamento de propostas feitas pelo Luiz Eduardo Soares na época do governo Garotinho. Mas, o Luiz Eduardo não tinha uma coisa na época: apoio político decidido do governador e uma mídia convencida de que a questão central do Rio de Janeiro é a diminuição da violência nas favelas.

OH – Apoio do Governador. Você não acha que isso acirra a disputa do protagonismo do discurso do “foi eu que inventei” ou “ foi o PMDB que trouxe”?

J – Foi o PMDB que trouxe e foi o Cabral que trouxe. Não sou fã de carteirinha do Sérgio Cabral, muito menos do PMDB e acho, inclusive, que as UPPs não são suficientes e será necessário um projeto maior. Um dos problemas centrais das UPPs é que está em 20 favelas e, no programa do governo, ela chegará apenas em 50, se chegar. E essas favelas pacificadas estão em áreas de elite da cidade; toda a zona sul foi pacificada em nome de um projeto que chamaria de Principado de Mônaco Carioca. O grande sonho da zona sul carioca é colocar uma cancela no começo do Aterro que diga: só entra com passaporte. E este projeto está se consolidando no momento.  Tudo isso vêm sendo discutido desde Carlos Lacerda. O grande sonho dele e da classe média lacerdista, moralista, católica é expulsar o pobre. Porque essa zona sul do Rio é muito bonita para que tenha tanto pobre. Acho que junto com as UPPs vai surgir um processo de especulação imobiliária gigantesco que expulsará o mais pobre sem a total necessidade de violência policial. Daqui a pouco vão oferecer 400 mil reais para o barraco do morador simplório do Cantagalo, que ele vai pegar aquele dinheiro e vai morar longe, exercer a vocação para a qual as populações pobres foram feitas: morar longe.

OH– E como a literatura entra nessas discussões vigentes?

J – Além de estar pensando muito sobre tudo isso durante anos, escrevi sobre e estou escrevendo um livro, não exatamente sobre UPPs, mas sobre a ascensão da classe C e a afirmação da favela dentro disso. Vai ficar nas favelas cariocas da zona sul aquele setor da população que ascendeu social junto com esse processo de políticas sociais do governo Lula.

OH – Qual o nome do livro novo?

J – “Psico”. De psicopata. Esse livro lançarei pela editora Faces.

OH – Da Bia?

J – Isso. É uma editora pequena de uma pessoa com muita coragem. Minha história fala de um menino negro que tem esse apelido. Em geral, nas relações de perigo, sempre quem salva é o rico. É o rico que trai e é o rico que salva a vida do pobre para se redimir da traição. Isso acontece muito fortemente em “O Caçador de Pipas”. No meu novo livro, “Psico”, inverti essa condição. Acho que fiz uma história muito forte. Não tenho heróis, não tenho bandidos no livro. No fundo, somos heróis e bandidos. Bons e maus. No fundo, somos ambíguos. E trabalho esta ambiguidade em sua radicalidade máxima.

OH – Sai quando o novo livro?

J – Quero muito que saia em março, dia 8, quando faço aniversário. Sou pisciano. É um livro que foi rejeitado por algumas editoras, mas que sempre soube que foi uma grande obra, porque tem toda uma leitura da favela que, acho, estou fazendo pela primeira vez. Sem arrogância, entende? A percepção dessa classe C é clara. É uma favela das lan houses, dos salões de beleza. É uma favela em que o personagem percorre quem tem dinheiro para pegar o dinheiro para pagar a propina da polícia. Pensei em chegar ao limiar da entrada das UPPs no meu novo livro, mas no momento em que o escrevi, isso não estava em pauta.

OH – Qual a sua expectativa para a Feira Literária das UPPs?

J – Cara, não vai existir Rio de Janeiro enquanto a cidade não estiver pacificada. Da mesma forma que era impossível estabilizar a economia. Se você conversasse com alguém seis meses antes do Plano Real, todos iriam se referir àquele plano como se hoje fala sobre a violência, que não tem jeito. Antes, se superestimava o poder das armas, dos bandidos. Engraçado, que da mesma forma ocorria com a economia. Quem é que apresentava a inflação como um mal maior e impossível de ser solucionado? Era exatamente quem se beneficiava da inflação. Quem apresentava a questão da violência no Rio de Janeiro como algo inquebrantável é diretamente quem se beneficia da violência. É quem tem os esquemas para a corrupção e com os bandidos. Não houve uma troca de tiros na tomada da Rocinha.

OH – Você acredita nisso?

J – Obviamente que foi feito um acordo. E assim, mesmo que exista acordo... na verdade, este acordo só foi feito por duas questões que são mais importantes do que o acordo; e aí vou falar da real politique. A primeira coisa: nenhum tráfico do Rio de Janeiro tem maior poder de fogo do que o Poder Central. E este só não resolveu isso antes por falta de interesse. Segunda coisa: mesmo que o tráfico continue existindo – e ele está existindo em todas as favelas do Rio de Janeiro, inclusive nas pacificadas – não existe mais o poder paralelo. Circulei favelas que o cenário era absolutamente assustador. O meu lado pernambucano é que me dava coragem para andar naquele horror. Hoje em dia você anda por qualquer favela quatro horas da manhã como se andasse em Botafogo. Não tenho que pedir mais licença a ninguém.

OH – E o nível de armamento da comunidade Koréia, no Jabour, zona oeste da cidade do Rio, por exemplo?

J – Aquele nível de armamento que continua lá você não tem mais hoje no Salgueiro que, antes, era um dos bastiões do Comando Vermelho. O próprio tráfico de drogas está com características do tráfico internacional, está em movimento, está na atividade de se esconder. Aqui na minha esquina, em Botafogo, eu sei que tem. Se a polícia chegar, o cara solta o flagrante e pronto. Não tem mais o ponto da esquina. O projeto da UPP não pode se resumir no que, atualmente, ele está se resumindo: a um projeto militar e nem ir para vinte ou trinta favelas.

OH – E, se me permite complementar, não pode sofrer fragilização após a saída do governo de Sergio Cabral Filho. Ou acha que isso não ocorreria após a saída do PMDB do executivo carioca?

J – Obviamente que o Beltrame (atual Secretário Estadual de Segurança do Rio de Janeiro) será o próximo candidato dele. Não há outro candidato com a mesma força de Lindberg para bater o Beltrame. Acho que, embora ele diga que não, ele será o candidato do PMDB. Mas, mesmo que dê Lindberg, qualquer que seja a pessoa e o partido que assuma no Rio, essa experiência das UPPs terá de ser aprofundada. Existem dois atores na cidade que nunca dialogaram e que precisam dialogar: a juventude e a polícia. Eles se odeiam! Um campo precisa ser criado para que eles caiam na porrada e para que depois se resolvam. Um dos projetos que temos da Flup, que é o Fluppense. Vamos colocar 15 policiais e 15 jovens escrevendo um livro juntos refletindo sobre a condição do policial e a condição do jovem na periferia. A gente está querendo que a primeira Flup revele autores que retratem esse embate entre a juventude e a polícia.

OH – Por que você não colocou também a política nessa dualidade juventude X polícia?

J- Porque a arena, embora seja comandada pelo Rei, por César (RISOS), a porrada é entre o leão e o gladiador. O embate real se dá entre jovens e policiais. São duas narrativas, principalmente a policial, que não são conhecidas. A gente vai atrás disso, vamos provocar e sensibilizar a ter esse discurso literário, estético. E pode surgir disso aí narrativas muito potentes.

OH – Você já me falou muito empolgado que você acredita no livro.

J – Lógico que eu acredito em livro. O livro me salvou.

OH – Te salvou do quê? Do maloqueiro?

J – (RISOS) Me salvou de ser um maloqueiro sem futuro. O livro é um passaporte para a inclusão social. Só vou acreditar no projeto da UPP na hora em que você tiver um livro na mão de cada um daqueles jovens. Essa é a grande diferença das classes no Brasil: a uma foi dada a oralidade; a outra foi dada a escrita.

OH – Nesse sentido, o esporte modifica menos que a literatura?

J – Óbvio que o esporte modifica menos! (RISOS) As grandes mudanças no mercado editorial brasileiro, assim como a ascensão da classe C no Brasil, se deram de um modo invisível e envolvendo a classe C. O mercado editorial brasileiro era paroquial, formado, dominado por quatro ou cinco famílias. Que não perceberam a importância chamado classe C, desse fenômeno chamado “geração ProUni”, são pessoas que não perceberam a complexidade do Pedro, por exemplo. A sua existência, Pedro Paulo Rosa, a facilidade com que você circula pela cidade, a fome de conhecimento que você tem não estava prevista por essas pessoas. O mercado brasileiro, inclusive principalmente o literário, só previa a existência e a participação das classes A e B. De repente, aparece um contingente de 40 milhões de pessoas dispostos a consumir tudo e a produzir, inclusive livro. Trabalho com jovens da periferia com textos belíssimos. Não me surpreende nenhum pouco a tua existência, Pedro, com a sua biografia. Conheço milhares de moleques com a tua biografia. O fenônomeno “Crepúsculo”, o fenômeno “ Harry Potter” existe porque o leitor da classe C o garante. Entende? O leitor tradicional de livraria da Travessa ou livraria Cultura, não daria suporte a números tão expressivos quanto os números recentes do mercado editorial. Eu trabalho em Nova Iguaçu, e na periferia de Nova Iguaçu; eu trabalho em Belford Roxo, e na periferia de Belford Roxo. Trabalho no Complexo do Alemão. Ontem à noite, apesar da minha dor lombar, estava na Cidade de Deus, num sarau literário. E em todos esses lugares estão surgindo leitores e produtores de textos. Tudo o que a periferia procura, o tempo inteiro, é se diferenciar. Ela quer produtos de qualidade, serviços também de qualidade. E existe toda uma indústria se preparando para essa periferia. Só que agora, para consolidar essa diferenciação, você precisa do livro.

OH – Essa diferenciação não seria a mesma? Todo mundo não quer a Ferrari?

J – Ferrari todo mundo quer. Quando fui fazer o livro do tráfico de órgãos e circulei o Recife profundo em sua periferia, o personagem na hora me decodificou. Quando me olhou, viu meu celular vagabundo, falou logo: “eu sei que não to ao lado do Pedro Bial”. E não só porque não sou famoso. Porque existe muita gente que não é famosa, mas que chega lá com um celular que o distingue socialmente. Entende? E eles têm uma percepção muito clara do que é um bom celular, tanto é que eles fazem loucura para ter um bom celular e um bom tênis. Trocam a vida por isso ou vendem seus órgãos. A gente vive num mundo em que as camadas populares, principalmente no que diz respeito ao consumo, estão mais bem informadas. Tem TV para isso. Mas, esses jovens também estão percebendo que todas as coisas, esses produtos não são a maneira de eles conseguirem a verdadeira ascensão social. A verdadeira diferenciação. O Brasil está descobrindo uma coisa extremamente diferente para a sua estética. Tanto ou mais do que o Woodstock. O que foi o Woodstock? Foi uma expressão jovem de um público desconhecido. É resultado de um período de dez anos de desenvolvimento econômico e social que incluiu um largo setor da população no consumo. Quando você inclui esse cara, ele também produz discursos e narrativas. E aí você tem o movimento punk, o movimento hippie. São jovens que, assim como os da juventude periférica brasileira, não se identificam com a biografia dos seus pais. Estamos vivendo isso ao vivo e a cores. A juventude está produzindo um novo discurso.

As crianças e Julio Ludemir autografando seus livros. fonte: arquivo pessoal.


OH – Qual novo discurso?

J – Eu fui criado em Olinda. Não havia a menor possibilidade de ser viado, bissexual. Hoje você vai à periferia e temos uma juventude claramente bissexual, dizendo isso a seus pais conservadores, evangélicos, moralistas. Está havendo um conflito geracional na periferia que está mudando a subjetividade do jovem pela primeira vez na periferia brasileira.

OH – Quem traz isso?

J – A informação, o livro. O livro aparece para informar e registrar essa novidade social surpreendente! Entende? Não existia juventude para o morro. Juventude era um privilégio às elites. Ser flagrado fumando maconha; ser flagrado trepando com a namorada na cama dos pais era para as classes A e B do Brasil.

OH – Não era uma cena que lhes pertencia.

J – Sim. Com 16 anos eles entravam no mundo do trabalho. Era uma linha direta ao mundo do trabalho! Juventude e tudo o que a juventude permite está sendo concedido à periferia. Quer dizer, óbvio que você vai criar um mundo novo. Por exemplo, é muito importante que a gente faça esporte. Recomendo do meu avô ao meu filho. Mas, quando você oferece para a população, como possibilidade de ascensão social, uma carreira esportiva, isso vira claramente um projeto de classes. Você estará desconfiado do potencial da sua população. Não é pra dar livro pra esse cara porque ele não sabe o que fazer com livro. Então, vamos construir quadras e mais quadras “para o macaco correr”! O que muda um país, de verdade, que permite que um país tenha um projeto de país, é o livro, bicho! É a educação! Essa que é a grande diferença. Eu não acredito, no fundo, na ascensão do Ronaldinho. É um brilho vazio, estéril que tá nessa idiotice dele de achar que maravilhoso é estar fodendo com várias mulheres ao mesmo tempo. Você tá entendendo? É isso que o esporte dá. Quando você acha que o único caminho de uma população se mover socialmente é o esporte, você está claramente dizendo que não acredita no seu povo. Por exemplo, há um grande incômodo com o imenso número de carros. Gente, o Brasil não foi traçado para que muitos tivessem carros. Só a classe média. As ruas não comportam, a cidade foi projetada para poucos terem conforto. Sempre que a larga escala de população é submetida a um plano de inclusão no processo econômico-social, tudo parece virar um caos. Esta elite sempre excludente, sempre reacionária, sempre fascista reconhece na hora quando o cara de Acari vai ao shopping Rio Sul. E ele é enquadrado, discriminado, mesmo com esses generosos projetos de governo! E a classe média está reagindo a isso com raiva. Como eu disse, as ruas do Rio e do Brasil foram projetadas para a classe média. Quando que o plano de saúde seria para todos? Sabe, isso significa que o dermatologista da minha mulher e da minha filha também está atendendo a filha da minha empregada que tem um emprego como balconista. Entende? E quando essas classes se encontram no consultório há um desconforto da classe média. Essa coisa da inclusão está tão fora dos paradigmas brasileiros que, quando você falava em projeto de inclusão, todos associavam a processos inflacionários.

OH- Não basta sermos sexta economia do mundo...

J – Pô, a gente precisa ser é o sexto país do mundo. Não basta pacificar a Rocinha, você tem que modificar aquilo. Continuamos a ser um país muito desigual, injusto e preconceituoso. Agora, sem uma economia pujante que inclua essas massas no consumo e na produção e principalmente esse grande e fundamental ator chamado juventude de periferia, fica complicado.

OH – É um novo ator mesmo.

J – Porra, não existia isso mesmo. A palavra “juventude” não existia no vocabulário pós Tijuca (bairro da zona norte do Rio de Janeiro).

OH – O que você pensa da linguagem que a Regina Casé vem construindo acerca da periferia na televisão?

J – Acho que a Regina Casé vai substituir o Faustão brevemente. Está caminhando para isso, e está afirmando uma estética. Se a Globo não perceber, alguém vai. O Faustão inovou, mas já saturou. Da mesma maneira que o Faustão se ajustou, ela já está se ajustando a algumas normas da TV brasileira. Eu posso usar, Pedro, você o tempo inteiro como o meu exemplo. Essa juventude foi prevista para que alguém tomasse conta dela. Seja a igreja, seja o tráfico, seja... tem sempre alguém que a oriente. Alguém que esteja puxando o carro. Cada vez mais me surpreendo. Quando lido com projetos de comunicação como os que trabalho, encontrei dificuldade para discutir a estética do “nem”, do funk. Ali, no programa da Regina, não cabe você por exemplo. Ou uma menina chamada Jéssica, que entrou na universidade sem cota. O próprio menino do passinho está reinventando o funk por dentro. Ele reinventou num protagonismo que surpreendeu todo mundo. Ele deserotizou a dança. Vou insistir o que falei aqui ao longo desse papo todo: esse devir jovem, a afirmação dessa novidade sócio-econômico, cultural obviamente vai acontecer. Quando a menina católica se apropria do funk, vai colocar essas expressões que ela rejeitava num outro nível. Talvez no seu nível. E preciso entrar em contato com as suas origens e redimensioná-la. O melhor samba talvez, seja feito por aquela pessoa que tenha negado o samba e depois se aproximado. Talvez o melhor funk venha a ser feito por aquela pessoa que mais rejeitou o funk por querer se diferenciar dele. Na hora em que ele vai dançar a bundinha, ele vai dançar diferente. Mas, se sabe como dança com a bundinha. São coisas muito loucas que vêm acontecendo na cidade: por exemplo, o branqueamento do funk. Festas como “ A favorita”. Está havendo privatização do funk pelas classes-médias. Em algum momento essa apropriação irá voltar como estética. No Cd novo da Gal Costa há duas faixas que remetem ao funk. Você vai ter um funk classe média e um funk popular que escuta o classe média.

OH – Talvez, assim, o funk seja encarado e respeitado como hoje é o samba e a MPB.

J – Exatamente. O funk da APAFUNK, por exemplo, é chamado de funk de mesa, que resgata os primeiros grandes letristas do funk. Quando o Mc Leonardo passou cinco anos fora do mercado, se “fodeu” e foi dirigir táxi. Quando voltou, só se cantava “buceta” e créu. Nesse momento, o funk precisa se redesenhar porque a privatização está encarecendo o baile. Ou vai virar um baile só de playboy, onde só entra quem tem R$50 reais. Ou, o baile vai se redesenhar. Surgirá e está surgindo uma dança muito mais complexa. É uma dança que está menos masculina, com menos “piroca”. Antes, era uma dança muito de pau.

OH – Quer destacar algum novo projeto seu?

J – Estou animado com o meu novo livro, “Psico”, pela editora Faces. E estarei empenhado com o projeto da Fluppense. Gostaria muito também de promover oficinas de rima para a galera também fazer funk diferente. E, para quem quer escrever, escreva querendo agradar a você. Tire todos os idiotas do seu ombro. Leia tudo e escreva. Tudo é importante de ser lido. Leia Dostoiévski e o jornal da manhã. Hoje você pode bombar sem o mini stream. E, se tiver consistência, você se mantém no mini stream. Eu, por exemplo, vi essa turma do stand up comedy começando a bombar aqui no Rio num teatrinho em Botafogo com 20 lugares. Tudo um dia já foi alternativo. Um dia o besteirol foi alternativo. A tendência é que você seja mini stream. Por exemplo, não sei qual é a consistência que o Michel Teló terá no próximo dele. Se não for consistente, será expelido. O bacana de agora é que as maneiras de produção de interesse foram revolucionadas. O cara não precisa mais agradar à família Marinho ou Mesquita para aparecer. Ele pode se pautar.

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