domingo, 28 de agosto de 2011

“Não faço música para músico” – Cascadura Samba, a nova obra de Micheline Cardoso

Por Pedro Paulo Rosa
Foto: Lucas Conrado / divulgação
Revisão textual: Paulo Cappelli




Fala com voz vibrante, no seu olhar a marca maior é o agito, o fogo de quem tem certeza do que está respondendo e procurando. Micheline Cardoso fala sobre o seu quarto álbum, “Cascadura Samba” e está à vontade com O HÉLIO para contar sobre sua experiência profissional como vocal de Tim Maia, Geraldo Azevedo, Nando Reis; sobre como iniciou na música e – sem medo – afirma que a relação com seus fãs é verdadeiramente próxima, sem o pedestal da diva. Em tempos de alta tecnologia aberta a todos, o espectador anda cada vez mais autônomo para escolher quem vai escutar. A internet entrou para a carreira de Micheline Cardoso como um dos elementos fundadores. Nascida no subúrbio carioca, esta artista trilha um singular caminho musical, consolida uma carreira no exterior e vem ao encontro dos brasileiros com o seu atual trabalho. A seresta, gênero muito executado pelo seu pai, foi o pontapé inicial para lidar com a música.

Obviedade é a última coisa que encontramos na fala de Micheline Cardoso e em seu trabalho artístico. A moça transborda o autêntico na música, na voz, no olhar e nas ações.

O HÉLIO: O seu atual trabalho fala sobre o quê?

MICHELINE CARDOSO: Fala sobre a vida, sobre o que eu vivi em Cascadura; fala sobre o amor, que é inevitável. Coisas cotidianas. Eu morava em Jacarepaguá numa casa super bacana, mas fui assaltada duas vezes, uma delas em frente a essa casa. E nessa época meu marido estava em Fortaleza. Peguei meus filhos e fui para casa da minha mãe, que mora em Cascadura. Nisso, a gente percebeu um novo ambiente, a estação de trem, as pessoas que moram lá.

O HÉLIO: O que tem lá de diferente?

Micheline: O aconchego. As pessoas são mais próximas. Eu não quero fazer essa separação não, acho muito chato isso. É diferente porque é diferente. O tempo das pessoas é diferente. As pessoas do subúrbio participam mais da sua vida. Porque tem tempo, tem churrasco. Ainda tem aquela coisa do vizinho. Quando saí de Cascadura, fui para Ipanema e não conheci quase nenhum vizinho. Aqui, fazemos as coisas muito correndo.

O.H.: Dá pra fazer samba mais fácil no subúrbio?

Micheline: (RISOS) Dá pra fazer samba mais fácil, rock mais fácil, tudo mais fácil...na verdade, isso também é uma curiosidade. Nunca falei isso em entrevistas; eu tenho por mania colocar o nome samba em todos os CDs. O primeiro se chamava “Samba de Pista”, e agora o quarto: “Cascadura Samba”. Mas, não tem só samba. Minha música tem elementos de samba. Tanto que vou participar do evento Festival da Nova Música Brasileira que é só de rock pesado. O atual está bem rock, acho que também por isso que a resposta do público está sendo bem rápida. Em outubro, vou fazer turnê para Europa e o nosso circuito será bem alternativo. Então, meu atual CD também é muito alternativo.

O.H.: Como assim?

Micheline: Fazemos circuito club. Para 800 a 1500 pessoas que querem escutar o meu trabalho. Eu só faço trabalho autoral e só canto em português.

O.H.: Até a sua forma de mandar beijo é autoral!

Micheline: Exatamente! (RISOS) Sempre mando sambeijos...já me mandaram registrar isso no INPI.

O.H.: Como é que você construiu o caminho profissional lá fora?

Micheline: Totalmente ligada à internet. Desde o nosso primeiro CD, deixamos tudo disponibilizado na internet. Há muito tempo, bem antes desse discurso “a música é de todos”. O myspace também nos ajudou muito nesse inicio. Os DJs e VJs lá de fora começaram a ver meu trabalho no myspace e me pediram música para remixar. E aí eu mandei a minha música “ Que nego é esse”. Essa galera me perguntou: você não quer fazer uma turnê aqui (na Europa). E foi assim, perfeito! Começou daí. Já estou na quarta turnê na Europa, começo a viajar dia 11 de Outubro. A primeira vez em que fui banquei passagem, agora isso mudou.

O.H.: Sua marca autoral mudou muito?

Micheline: Acho que não. Cheguei a resgatar músicas do meu CD “ Samba de Pista” para o “ Cascadura Samba”. No caso do atual, estou tendo uma distribuição lá no exterior. O que não acontece no Brasil; aqui eu mesma mando via Correios. Mas, lá fora, tenho uma distribuidora e uma gravadora, chamada “Afrobaile”, que penetra no mundo todo. Dessa vez, está bem diferente. Estamos chegando em revistas de Londres, da Holanda, Eslováquia. Eu nunca pensei que fosse chegar uma música minha na Eslováquia! Fiquei emocionada. Falei, porra! Por isso que eu digo que a música não tem esse negócio de rótulo. É sentimento. Se a pessoa sente que tem uma coisa que move diferente, ela fica.





O.H.: Como é que você pode traduzir MPB para Micheline?

Micheline: No meu entender, o Brasil é o país mais rico musicalmente. Não é querendo ser nacionalista exagerado. Mas, é a verdade. Aqui você tem frevo, samba, caboclinho, maracatu, chorinho, cara, é muita influência. Acho que a MPB, para mim, é mistura disso tudo. É o tempero. Somos um país miscigenado. Eu não sou branca pura nem ninguém é negro puro. Aqui é tudo misturado mesmo, e isso acontece na música. Até quem faz rock, samba, TUDO é misturado. Senão, não é Brasil, cara! Por exemplo, meu pai era cantor de seresta. Comecei, aos seis anos de idade, acompanhá-lo para as rodas de seresta. Ia com ele às serestas. Cantava Jamelão, Lupicínio Rodrigues... na verdade, as primeiras músicas que comecei a escutar eram músicas de seresta. E eu vivia no meio de adulto. Sou a mais velha de três irmãs. E meu pai tinha essa ligação comigo. Me dizia que era muito afinada, e as pessoas achavam muito bonitinho ver criança cantando. A gente era bem pobre mesmo, não tínhamos nem aparelho de som, então, as músicas eu aprendi ao vivo. Tocadas na hora. Eu comecei profissionalmente na Orquestra Tamoio e consegui comprar, economizando, aparelho de som. (RISOS) Nem era tão bom, mas funcionou!

O.H.: Como é que você classificaria o seu legado? Porque é bem diferente, concorda? Você está fazendo uma carreira consolidada lá fora e ao mesmo tempo canta aqui dentro e com muitas parcerias. Você vive dois mundos.

Micheline: A gente tem a cultura de escutar música em outras línguas. E, às vezes, deixamos de dar valor às coisas que temos. Nada contra música estrangeira, galera! Mas, eu acho assim: o cantor, o autor, o compositor, ele tem que ter estilo, sabe, Paulo? Senão, fica muito repetitivo. Confuso. Ainda não está na época de deixar legado, mas as coisas estão acontecendo. Este quarto CD está me dando uma visibilidade muito grande. E, por incrível que pareça, essa visibilidade também está germinando no Brasil. É muito chato esse lance de um imitar o outro. Você pode chegar muito próximo a um cara do jazz, mas imitar nem pensar. Cada um tem que saber a sua verdade e mostrar. A pessoa tem que saber: essa aqui é a Micheline, essa aqui é a voz da Micheline. Entende? Quer me irritar é confundir.

O.H.: Você tem compromisso com alegria? Você cantou muita seresta, muito Lupicínio Rodrigues, mas você não parece melancólica, certo?

Micheline: De jeito nenhum tenho compromisso com a alegria, mas sou uma pessoa alegre e feliz por natureza (RISOS). Nas minhas canções, tem músicas de cortar pulsos, de mergulho; mas, também tem balada, dance. Eu tenho compromisso com as coisas que eu acho que tenho de falar. Hoje em dia, as pessoas demandam um certo carnaval, um espetáculo do artista. E lá fora eles não necessitam que o artista faça oba-oba. Se você vai para Europa fazer mulata Sargentelli, você vai fazer outra coisa! Agora, se você vai lá para fazer música, tem que ter músico foda! É tocar de verdade! Então, não é escarcéu. O nosso show, o nosso CD é todo autoral. Primo pelo estilo. Meus músicos tocam demais!

O.H.: Qual instrumento que te motiva, te arrepia e emociona mais?

Micheline: Piano. Ganha disparado. Eu e meu marido compomos juntos. É muito legal. O pouco que toco de violão dá para a gente trabalhar. A parte harmônica do meu trabalho é muito rica. Por isso, não dá para qualquer um tocar não...(RISOS). Tem tudo, tem improviso, tem seresta, tem dance, tem jazz. “Gema” é uma música que fecha o show, é o maior funk, o maior porrada. Tem o “Favela Funk” que fizemos com um DJ austríaco, ficou um excelente trabalho.

A cantora pratica algo muito raro, a valorização da figura do fã, compreendendo este grupo dentro do seu espaço de grande consideração.

O.H.: Tem diferença entre a Micheline que sobe ao palco e a que compõe?

Micheline: Nenhuma diferença. Tenho amigos que me chamam de louca, dizem que eu levo o fã para dentro da minha casa. Mas, Paulo, se eu pudesse, levava o fã mesmo para dentro da minha casa. Porque é essa galera que te leva para frente. Tenho colegas que falam “você nunca vai ser artista. A distância é necessária”. Vão cair de pau em cima de mim, mas eu não estou nem aí! Não crio distâncias mesmo. Para mim, não tem redoma mesmo. Não consigo compreender o porque esse clima pedante. Tenho uma fã que é presidente do meu fã clube de João Pessoa. Sempre quando ela vêm falar comigo, ela treme. E eu agarro ela, abraço ela forte e mando ela parar de tremer. (RISOS). Falando em Nordeste, Pernambuco é um dos lugares mais plurais e ricos musicalmente e ritmicamente. Vai ter gente caindo de pau nisso também! (RISOS). Agora, falando do Rio, para mim nunca existiu esse lance do samba do asfalto e samba do morro. Não faço essa distinção. Há muito preconceito interno também dentro da música.




O.H.: É difícil se sustentar através da música?

Micheline: Não. Eu trabalho com música há 20 anos. Acho que a pessoa, o músico, o artista precisa saber o que ele quer. E eu sempre soube o que eu queria. Comecei a trabalhar como cronner. Mas sabia que não podia ficar só nisso. Trabalhei na noite também e sabia que não podia ficar parada nisso. Senão, você morre. Passa rápido demais. É claro, tive muita sorte de estar em lugares bons e com pessoas vendo. Por exemplo, trabalhava com o Tim Maia como backing vocal dele e ao mesmo tempo fazia jingle e ia à luta. Outra coisa: nunca fiquei numa coisa só. Sempre fui múltipla. Tenho certeza, Pedro, que se você ficar no barzinho cantando a música dos outros, vai morrer ali. Você tem que fazer a sua música! No barzinho, se toca o que o povo quer. Tem que ter um estilo, senão você é confundido. Fora que a pessoa pode cantar para caralho, mas num barzinho os equipamentos de áudio não deixam você mostrar bem sua voz. O cara fica de música de fundo, e nunca quis isso para mim. Vejo muita gente foda, que canta à beça, mas não engata. Cara, eu fui criada no conjunto da Ordem dos Músicos do Brasil em Inhaúma (subúrbio do Rio de Janeiro); o meu vizinho de janela era o Zé Ketti! Voltando ao lance do fã, prefiro o palco ao estúdio. Porque no palco, é um momento único. Cada vez que canto, canto de uma maneira. No CD, eu já gravei, só vai ficar daquele jeito! Gosto da troca, de pessoas! É fogo, eu já cantei para duas pessoas e já cantei para 200 mil. A Janis Joplin fala que estar no palco e cantar para trinta mil pessoas é como transar com todas elas e depois ir embora para casa sozinha. É mais ou menos isso. Fazer show é êxtase. Não faço música para músico! Primeiro que músico não paga ingresso! Depois, fica criticando... (RISOS). Faço música para o povo! Para os meus fãs.

O.H.: Tem fronteira entre arte e entretenimento?

Micheline: Tem não, cara. É o lance do Titãs, “Diversão e Arte”. Porque, por exemplo, pessoas que possuem menos grau de instrução escolar, que tiveram poucas oportunidades de ler, de estudar, elas conseguem absorver melhor quando estão se divertindo. Mas, essa diversão não precisa ser carnaval, entende? Tem que haver uma interatividade de forma que a pessoa consiga se reconhecer naquela expressão artística, sabe? Por isso, acho que não tem fronteira. E outra: música não escolhe classe social!




O.H.: Fala um pouco da experiência de trabalhar com o Tim Maia e, atualmente, com o Nando Reis.

Micheline: Vai parecer piegas, mas o Tim é uma escola. Foi e é uma escola. Ele tinha uma caixa torácica absurda, ventava tudo. Ele era maravilhoso, e a imprensa aborda pouco esse lado. Gravamos juntos quatro ou cinco CDs. Em março de 1998, por exemplo, ele já tinha parado de beber. E ninguém fala isso. Outra coisa que pouca gente sabe é que o Seu Tim não gravava duas vezes. Entrava e gravava de primeira! Se o cara não registrasse, se ele pensasse que era só passar o som, ferrou! Na primeira, ele acertava. Não tem como você falar que ele não é uma escola. Pedro, ele tinha uma preocupação com as crianças abandonadas muito grande. A gente ensaiava oito da manhã no Recreio dos Bandeirantes! E minha filha tinha dois anos. Ele gostava que eu levasse ela para os ensaios. E ele falava uma coisa linda: “o ser humano só vale até os sete anos de idade”. Ele catava as crianças do Recreio dos Bandeirantes e dava almoço, roupa, brinquedo para todo mundo! Criança de rua, criança de casa. Para o Tim, não havia a menor distinção. Ele era uma pessoa sensacional! Um cara, porra, formidável! Nunca tive problema com o Seu Tim. E, atualmente, com o Nando Reis, tem sido muito bacana. O Nando é indecifrável. O front do show dele é só 14, 15 anos. Mas, po, as letras dele são muito profundas. É um poeta absurdo. A penetração da arte dele é muito grande. É um puta artista. Eu sou uma louca no palco do Nando. E ele não tá nem aí! E nesse novo trabalho, tem uma música que a gente canta junto que é um grande teatro. É muito bom! Vou fazer cinco anos trabalhando com ele. Se eu fosse resumir, o que me chama mais atenção é a autenticidade do Nando.

O.H.: Atualiza a sua agenda para a gente.

Micheline: Dia 2 de Setembro, no Jokers Pub Café, em Curitiba; dia 10 de Setembro, lançamento aberto do Cascadura Samba, no Espaço Cultural Gabinete, no Rio. É uma casa nova na Lapa. Depois, dia 12, estarei no Festival Nova Música Brasileira. Aí, dia 17 de Setembro, estarei em Maracaípe, no mar, em Porto de Galinhas. (RISOS) Vai ser muito, muito bom!

O.H.: Qual é o seu desejo agora?

Micheline: Ah, que o meu atual trabalho possa marcar cada vez mais o mundo e os brasileiros. Que as pessoas curtam, gostem ou até que não gostem, critiquem, faz parte! O chato é quanto vão só falar mal, né? E continuar levando meus fãs junto comigo.

Dotada de lucidez e força para lidar com a música e com a fama, Micheline desconstrói o hábito da glamorização excessiva, enlaça o Brasil e a Europa com seu ritmo misturado e propagador de movimento. Impossível entrar em contato com a sua música sem se aliviar e sentir algo diferente, autoral que adentra e conquista.

LINKS RELACIONADOS:

http://michelinecardoso.com.br/
http://www.myspace.com/michelinecardoso

Fotos de divulgação: http://palcomp3.com/michelinecardoso/#fotos e Blog Acordes

3 comentários:

  1. Micheline Cardoso é verdadeiramente isso aí... espontânea, vibrante, visceral, dona de um timbre penetrante e envolvente! Acomodação não é a sua linguagem. É batalhadora, sabe identificar e explorar bem as oportunidades, não importando como se apresentam. Ela vai lá e faz a festa! Assisti alguns de seus shows e como o seu público reage... canta, dança e vibra junto com ela! É de arrepiar! Parabéns, MC!!!

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  2. Obrigada pelo carinho de vocês d'O Hélio, pela abordagem nada comum e super interessante que deram à entrevista.
    Sambeijos<3.

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  3. Stellinha,
    Emocionada aqui com suas palavras.
    Você, hiper talentosa fotógrafa, com suas palavras e olhares poéticos.
    Obrigada, querida!
    Sambeijos.

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